domingo, 27 de março de 2016

Enfrentar o neogolpismo


Na segunda metade do século XX a América do Sul foi palco de uma série de Golpes de Estado que interromperam democracias ainda não completamente estruturadas e instalaram ditaduras sangrentas. Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, a lista dos países golpeados é extensa. No entanto, junto com o século XXI se instalou na região uma onda popular e uma série de governos democráticos substituíram os brucutus de plantão. 

Por meio do voto foram eleitos governos progressistas ou de esquerda em diversos países: Lula e Dilma no Brasil; Nestor e Cristina Kirchner na Argentina; Hugo Chaves e Nicolás Maduro na Venezuela; Tabaré Vazquez e Pepe Mujica no Uruguai; além de Evo Morales na Bolívia e Fernando Lugo no Paraguai.

Imediatamente esta primavera democrática começou a sofrer fortes ataques da direita conservadora e a primeira baixa se deu em 22 de junho de 2012 quando o parlamento paraguaio destituiu o presidente Lugo em um julgamento sumário que foi considerado um golpe (ele contava com o apoio de apenas 3 deputados e 3 senadores sendo que seu vice não era muito confiável). Tudo começou no poder Legislativo que chamou o presidente a prestar contas sob o episódio ocorrido em 15 de junho quando 11 camponeses e 7 policiais morreram em uma operação de reintegração de posse. Em uma semana o presidente eleito pelo voto popular foi deposto.

Saiba mais sobre o massacre de Curuguaty:
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O golpe contra Lugo apresentou dois agentes comuns nas modernas articulações golpistas, além, naturalmente, da oposição política reacionária e seus aliados no mundo econômico; um poder judiciário autocrático e uma mídia manipuladora.

Outro aspecto presente em praticamente todos os Golpes de Estado ocorridos na América Latina desde os tempos da Guerra Fria é a interferência direta do governo norte-americano. Trata-se, certamente, de um dado polêmico, alimentando teorias da conspiração mas também fartamente documentado. Atualmente se fala inclusive de uma nova matriz teórica não violenta que teria aperfeiçoado a Doutrina Monroe: o Golpe Suave, que, inclusive, já tem seu ideólogo: Gene Sharp

Saiba mais sobre o Golpe Suave
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Outra faceta sempre lembrada dos protestos conservadores é a sua ligação com ONG's norte-americanas que as financiam. Dentre estas se destaca a Fundação Koch, ligada ao Tea Party e os Students for Liberty (no Brasil Estudantes pela Liberdade - EPL) de onde surgiu Kim Kataguiri, tido como líder da juventude de direita.

O sociólogo José de Souza, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em entrevista para a revista Carta Capital nº 876 (18 de novembro de 2015, pág. 98) resume o mecanismo golpista:

“Existe uma estrutura, uma gramática do golpe no Brasil. Ele mudou, modernizou-se, mas mantém a mesma estrutura. O golpe precisa de “bumbo” tocado pela imprensa conservadora, do suporte da classe média e de um elemento constitucional para dar aparência de legalidade à captura da soberania popular. Nos governos democráticos de Getúlio Vargas e João Goulart, esse elemento eram os militares, pois a Constituição previa a intervenção das Forças Armadas em caso de desordem. Essa gramática modernizou-se: não está mais ancorada na botina do general, mas na toga da lei. O elemento constitucional atual são as agências de controle, a Polícia Federal. Os juízes justiceiros, postos para além do bem e do mal.”

Aos poucos este debate foi ganhando visibilidade pública chegando ao ponto do secretário-geral do PSDB, deputado Sílvio Torres (SP) – notem que se trata do maior partido de oposição ao governo do PT –, respondendo a uma pergunta do jornalista Pedro Venceslau, afirmar:

“Resguardadas as devidas proporções, a judicialização que está havendo da política brasileira lembra um pouco a militarização da política. Houve um tempo em que os fiadores das questões importantes eram os quartéis. A palavra de um general tinha força na política. Hoje, estão transferindo para a Alta Corte as decisões que não estão sendo tomadas nas outras instituições. Isso é preocupante. O judiciário pode começar a intervir onde não deve. Está ultrapassando o desejável de um poder.” (O Estado de S. Paulo, 1º de janeiro de 2016, pág. A6)

Com a escalada das ações do juiz Sérgio Moro em sua cruzada contra o Partido dos Trabalhadores através da chamada Operação Lava-jato, que culminou com a condução coercitiva do ex-presidente Lula para prestar depoimento na sexta-feira, 4 de março, a situação chegou a um estado insustentável. As críticas aos excessos e abusos – segundo alguns – ou flagrantes ilegalidades constitucionais segundo outros, praticados pelo juiz Moro originou uma grande mobilização de resistência de setores democráticos contra este estado de coisas.

Já no dia 7 de março em um ato realizado no auditório Vladimir Herzog do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo os presentes se posicionaram firmemente contra o golpismo. Nos dias seguintes ocorreram dezenas de encontros onde a sociedade civil progressista se posicionou pela legalidade e condenou as manobras em curso: dia 16, Ato pela Legalidade Democrática, organizado por intelectuais e artista no Tuca (Teatro da Universidade Católica); dia 17, Ato de Juristas pela Democracia, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP); dia 18, grande ato de rua na Av. Paulista; dia 21, manifestação de estudantes da PUC; dia 22, um total de 115 movimentos sociais ligados à temática da periferia lançam o manifesto #periferiacontraogolpe; no mesmo dia, operários da Ford reunidos em assembleia se posicionam contra o golpe (no que seriam seguidos pelos trabalhadores da Volks dias depois); dia 23, realizado na Casa de Portugal, ato das centrais sindicais contra o golpe, no mesmo dia, em frente a faculdade Mackenzie, estudantes realizam mobilização contra o golpe e dia 24 ato popular em frente a TV Globo pela democracia e contra a posição da emissora tida como principal apoiadora do golpe. Estas foram apenas manifestações ocorridas em São Paulo e várias aconteceram em outros estados.

Naturalmente, a direita não permaneceu imóvel, além de sua grande manifestação na Av. Paulista no dia 13, grupos radicais acamparam na mesma avenida em frente ao prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP, apoiadora do golpe e movimentos fascistas deram as caras nas ruas. Segundo o jornalista Ayrton Centeno, “Somam 25 as agressões contra prédios de partidos de esquerda ou sindicatos desfechadas no país em somente 18 dias de março, ou seja, ataques diários desferidos contra a democracia” (Leia texto AQUI)

Em que pese o apelo de grupelhos saudosistas o neogolpismo não se apoia nas armas militares. Agora é preciso dar uma cara de institucionalidade civil ao golpe, o que tem, inclusive, causado divisões entre os golpistas de matriz liberal-conservadora e os brutamontes fascistas.

De qualquer forma o neogolpismo não é mais apenas uma possibilidade, é uma realidade em curso. Superar este momento e reposicionar o campo democrático é essencial para consolidar a vitória sobre o atraso. Neste momento os olhos internacionais estão sob o Brasil acompanhando o desenrolar da crise. Como sabem os envolvidos, ganhar as ruas é essencial para que o grito de Não vai ter golpe seja vitorioso.

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