quarta-feira, 25 de abril de 2018

Internet e liberdade de expressão


Na década de 1960, auge da guerra fria, o Pentágono passou a estudar a criação de uma rede de comunicação entre computadores. Sob ameaça de um eventual ataque nuclear e em meio a corrida espacial (uma vez que os soviéticos saíram na frente com o lançamento do satélite Sputnik, em 1957) foi criada a agência Arpa (Advanced Research Projects Agency) que, por sua vez, criou em 1969 a ARPANet que tinha o objectivo de interligar as bases militares e os departamentos de pesquisa do governo americano envolvidos no projeto. Assim, o embrião da internet surgiu a partir do complexo industrial militar dos EUA. 


Como é comum nestes casos, o sistema foi desenvolvido com a colaboração (e financiamento) de universidades, o que permitiu que o mesmo fosse usado também para outras pesquisas acadêmicas. Como acontece com frequência, a nova tecnologia militar acaba por gerar negócios que são posteriormente exploradas pela iniciativa privada.

No Brasil o marco inicial da internet pode ser assinalado no ano de 1989 quando a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) se conectou à Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) através da rede Bitnet, uma rede precursora da Internet que funcionava somente entre computadores IBM.

Outro marco foi a criação da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) cujo objetivo era construir uma infraestrutura nacional de rede internet de âmbito acadêmico. Assim, a internet surgiu no Brasil diretamente com objetivos acadêmicos. Não demorou muito e em 1992 surgiu o primeiro provedor brasileiro de acesso particular à internet, o Alternex.

Ao contrário de outros serviços transnacionais como correios ou telecomunicações, não existe, em relação a Internet, um órgão colegiado de nações para organizar o serviço. A administração dos números de IP e o registro dos domínios são feitos pela a Internet Corporation for Assigned Names and Number (ICANN), com sede na Califórnia, que se apresenta como uma organização não-governamental onde “governos e organizações de tratados internacionais trabalham em parcerias com empresas, entidades e indivíduos altamente qualificados, envolvidos no desenvolvimento e manutenção da Internet global”. Na verdade, trata-se de uma entidade privada. Este sistema desagrada profundamente a Rússia e a China que defendem que o controle da internet deve ser passado para a ITU (International Telecomunications Union), entidade fundada em 1865 para administrar padrões tecnológicos internacionais (como frequências de rádio) e tem sede em Genebra

Hoje sabemos que a internet alterou as relações sociais, culturais e econômicas no mundo contemporâneo de uma forma que só encontra paralelo na invenção da tipografia por Gutenberg. No final século XV, a tecnologia da imprensa era livre e se espalhou rapidamente pela Europa e depois para o restante do planeta sem qualquer controle por parte de Gutenberg. Algo semelhante com o que o senso comum imagina ser a internet hoje.

No entanto, essa aparente liberdade é mais ilusória do que concreta. Criou-se uma ideologia que propaga uma neutralidade natural da rede que não sobrevive a uma análise mais acurada. Nos documentos secretos do governo norte americano divulgados pelo WikiLeaks há várias denúncias de ciber-espionagem contra governos (inclusive o da presidenta Dilma em 2013). O uso de fake news para influenciar eleições, o recente escândalo do uso de dados privados coletados pelo Facebook e usados pela empresa Cambridge Analytica, sem entrar na questão de crimes cibernéticos como propagação do ódio ou pedofilia, colocaram na ordem do dia uma questão bastante pertinente: a internet seria um instrumento utilizado pelo poder econômico e político para controlar o cidadão ou uma forma de democratizar as relações políticas e sociais do mundo contemporâneo?

Estes fatos lançaram uma ducha de água fria sobre a visão ingênua, ou, talvez, romântica, de que as redes sociais seriam, por natureza, espaços plurais e abertos à liberdade de expressão.

A questão central passa a ser como garantir a liberdade – e a própria cidadania – neste ambiente rigidamente patrulhado e controlado e algumas dúvidas se apresentam:

1 – Até que ponto os EUA exercem o controle efetivo sobre a rede mundial de computadores?

2 – Qual o nível de segurança sobre os dados sigilosos que trafegam na rede?

3 – Os dados pessoais coletados por forças políticas ou comerciais podem ser usados para manipular nossa opinião?

4 – Como garantir a liberdade de expressão – e a própria cidadania – neste ambiente rigidamente patrulhado e controlado

5 – A liberdade do cidadão e a democracia estão ameaçados pela Internet?

A conclusão é que a internet é um espaço de disputa política e econômica, portanto, deixá-la única e exclusivamente sob o controle do mercado é uma temeridade. Não é por acaso que as maiores empresas de Internet estão sediadas nos EUA, isso se dá, não por questões tecnológicas, mas principalmente porque lá o ambiente regulatório é bastante frouxo, o que dá ampla liberdade de atuação para o setor de economia digital.

Mas políticas de regulação veem sendo debatidas em várias localidades e não resta dúvida que o debate sobre a regulação está muito mais presente na sociedade do que há dez anos. A União Europeia, por exemplo, debate regras econômicas mais rígidas para a internet. A Europa decidiu que o Uber se equipara legalmente a uma empresa de transporte e não é um aplicativo digital e no mês de abril foi apresentado ao G-20 um relatório do International Bureau for Fiscal Documentation (IBFD) com propostas sobre como arrecadar impostos das empresas digitais que fazem negócios em países no qual não tem presença física.

Mas o debate ultrapassa a esfera econômica avançando para o campo do direito civil Um dos possíveis desdobramentos da investigação do Senado e da Câmara dos EUA sobre o caso Facebook/ Cambridge Analytica seria a eventual criação de uma legislação para proteção de dados do cidadão, estabelecendo claramente a quem eles pertencem. Isso, segundo a cobertura da imprensa, não encontraria oposição do Facebook, caso não impedisse a capacidade de inovação, disse Zuckerberg.

O Marco Civil da Internet (lei 12.965, sancionada pela presidente Dilma em 23 de abril de 2014) é parte desse esforço para estabelecer, no Brasil, “princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet”. Sem analisar profundamente o conteúdo da lei, seja seus pontos positivos ou possíveis lacunas, é preciso reconhecer que ela garante direitos importantes, respeita à liberdade de expressão (art. 2º), afirma que o “acesso a internet é essencial ao exercício da cidadania” (art. 7º) e em relação aos dados que trafegam pela rede afirma que eles devem ser tratados de forma isonômica (art. 9º), o que, inclusive, causou bastante alvoroço entre os empresários do setor que veem, por exemplo, a questão da neutralidade da rede como um entrave aos negócios. Também é interessante assinalar que o capítulo IV – Da atuação do Poder Público, prevê a “adoção preferencial de tecnologias, padrões e formatos abertos e livres”.

No que diz respeito especificamente à liberdade de expressão é preciso assinalar que ela não é atributo isolado, mas o resultado de um conjunto de normas, procedimentos e costumes presentes na sociedade. Combate aos monopólios do setor, acesso universal e à rede, regionalização da produção audiovisual, disponibilização da informação pública aos cidadãos são, por exemplo, campos ligados à liberdade de expressão onde a regulação (ou sua falta) por parte do estado causam impacto sobre a liberdade de expressão.

O Marco Civil da Internet não abarca toda a complexidade aqui apresentada mas aborda o problema de forma positiva. Para garantir que a internet seja o espaço da liberdade de opinião será preciso enfrentar, no campo econômico, a questão dos monopólios digitais, como Google ou Amazon, no aspecto legal estabelecer marcos legais que protejam o cidadão do controle digital e, no espaço civil, criar uma forma de governança internacional.

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Texto apresentado no debate Ameaças ao Marco Civil da Internet: liberdade de expressão em jogo, parte do seminário Internet, Liberdade de Expressão e democracia. Desafios regulatórios para a garantia de direitos, realizado em São Paulo nos dias 13 e 14 de abril de 2018.

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