segunda-feira, 1 de maio de 2017

A greve geral e a traição da imprensa

Imediações da Praça da República, no centro de São Paulo, no dia da greve

No dia 28 de abril de 2017 a população brasileira realizou o que foi considerado por muitos a maior greve geral da nossa história. No entanto, a chamada grande imprensa tratou o caso como sendo um dia de caos no transporte público (em São Paulo ônibus, metro, trem e aviões pararam), potencial fonte de prejuízo econômico e motivo de incômodo para a classe média, além de enfatizar casos de violência e vandalismos.
Sobre a real motivação da greve muito pouco.

Não demorou muito para que as redes sociais passassem a comentar este fato e a comparar a cobertura nacional com a realizada por veículos de comunicação de outros países. A diferença no enfoque era clara, os jornais de fora procuravam entender os motivos por trás da paralisação, suas motivações políticas e econômicas e as possíveis consequências. 

O jornalista Altamiro Borges, no texto “Imprensa mundial humilha a mídia nativa”, compara a cobertura local com a internacional:

O jornal estadunidense The New York Times, por exemplo, publicou longa reportagem com o título “O Brasil se mobiliza contra a austeridade”. O veículo, que já serviu de bíblia para a mídia nativa, afirma que a greve foi nacional e paralisou transportes, bancos, fábricas e escolas. Já o alemão Deutsche Welle afirma em sua manchete que “Brasileiros se mobilizam pela democracia” e lembra que a última greve geral no Brasil ocorreu em 1996, no governo FHC. O veículo explica que o protesto foi as reformas propostas “pelo governo conservador do presidente Michel Temer”. Já o espanhol El País estampa no título: “Greve geral desafia as reformas do governo brasileiro". O francês Le Monde destaca: “Greve histórica”. A rede britânica BBC registra: “Primeira greve geral em duas décadas”. Até o conservador Clarín, da Argentina, foi mais honesto do que os jornais nativos. (Leia AQUI a íntegra do artigo)

Seria a imprensa brasileira incompetente, desonesta ou passaria por um momento de grave crise institucional? 

Esta dúvida angustiante nos remete a conhecida frase que diz ser o jornalismo o exercício da busca da verdade. Como a conceituação do que é a verdade, do ponto de vista filosófico, é uma tarefa complexa, ou até utopia, o jornalismo desenvolveu algumas técnicas para tentar se aproximar ao máximo do que vem a ser a realidade. Assim, o fazer jornalístico se construiu a partir da coleta dos fatos, da objetividade da narrativa e dos dados concretos disponíveis sobre o assunto em pauta, no entanto, a complexidade da missão de traduzir o real faz com que o jornalista se depare, na prática, com versões, análises e opiniões. A partir desta constatação se estabeleceu outra máxima do jornalismo; a de que se deve dar, sempre, os dois lados de uma questão.

No entanto, existe outro problema. Geralmente quem transmite a informação jornalística não é um profissional isolado, mas sim uma empresa de comunicação de massa. No Brasil o mercado da informação de massa é dominado por poucas e grandes empresas que formam um oligopólio que funciona segundo as leis tradicionais do mercado, com interesses políticos e econômicos particulares. Naturalmente os interesses empresariais não coincidem com os dos jornalistas nem com os da maioria do cidadão consumidor de informação.

Isso que dizer que a informação divulgada não é pautada por aqueles princípios fundadores do jornalismo, mas, sim, intermediada pelos interesses empresariais, o que se traduz em seleção e controle do que é veiculado. Esta é a verdadeira crise do jornalismo. Não se trata de revolução tecnológica, mudança de hábitos da população ou encolhimento de mercado (publicitário e leitor) causado pela crise econômica, o motivo central da alegada crise do jornalismo brasileiro é a traição das grandes empresas de comunicação aos princípios do bom jornalismo.

As duas grandes vítimas desta traição são os cidadãos que não recebem uma informação qualificada e os jornalistas, que são mutilados, cerceados e impedidos de realizar plenamente sua profissão. Isso significa desprestígio social do profissional, sua desvalorização, inclusive salarial e questionamento sobre a própria importância social do jornalismo. O resultado deste estado de coisas é uma profunda antipatia da população para com a imprensa, que se traduz em rejeição ao profissional que ela identifica como responsável pela notícia, ou seja, o jornalista.
Esta é a razão pelas quais profissionais experientes são questionados, infelizmente até agredidos fisicamente, em alguns episódios de cobertura de grandes eventos de massa. Na visão dos manifestantes, os jornalistas estão lá, não para traduzir os acontecimentos para o restante da sociedade, mas, para, distorcê-los segundo o interesse do mundo empresarial e político.

Os jornalistas sabem disso. É por isso que muitos jornalistas respeitados, por opção ou por não aceitarem a submissão a este sistema, se encontram fora das grandes redações lutando para ganhar a vida e fazer jornalismo em pequenos veículos ou pela internet. Neste período temeroso de nossa história onde trabalhadores se organizam para construir um futuro justo e solidário e resistir ao desmontes de seus direitos sociais o jornalismo deve ser exercido em sua plenitude ou não se justifica e dá razão aos que advogam que a imprensa entra em uma espécie de crise final. Ninguém constrói uma história digna traindo seus princípios.

Abaixo você pode ler mais sobre a cobertura da greve

Marcelo Auler - O bom jornalismo aderiu à greve (com acesso às análises de outros jornalistas)
http://marceloauler.com.br/o-bom-jornalismo-aderiu-a-greve/

Ricardo Kotscho - A vitória dos black blocs: a quem interessa?
http://noticias.r7.com/blogs/ricardo-kotscho/a-vitoria-dos-black-blocs-a-quem-interessa/2017/04/29/

Mauro Santayana – A greve geral e o discurso único
http://www.maurosantayana.com/2017/04/a-greve-geral-e-o-discurso-unico.html

Renato Rovai – Globo e Record fecham acordo e usam o mesmo vocabulário para definir greve geral
http://blogdorovai.revistaforum.com.br/2017/04/28/globo-e-record-fecham-acordo-e-usam-o-mesmo-vocabulario-para-definir-greve-geral/

Paulo Moreira Leite – Globo faz jornalismo ruim e culpa greve geral
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/292884/Globo-faz-jornalismo-ruim-e-culpa-greve-geral.htm

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PS – Para terminar narro uma pequena história. No início da semana em que ocorreu a greve geral parei em um estabelecimento no centro de São Paulo para tomar um café. Sob o balcão havia um panfleto convocando a greve, aproveitando a deixa puxei conversa com a atendente sobre o assunto. A moça afirmou que a mobilização estava forte, que todos os clientes comentavam, que o centro deveria parar e que concordava com o protesto pois a situação não estava fácil e a proposta de mudança na aposentadoria era muito ruim. Ao final comentou, “ouço isto todo dia, menos na televisão”. Bingo!

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